O mercado automotivo brasileiro sempre foi sedento por modelos que, em nome de um preço menor, eram simples de construir e traziam apenas o básico de equipamentos.
O VW Fusca foi o carro mais vendido do Brasil desde o início da indústria nacional no final da década de 1950 até finalmente passar o bastão para o Gol, lançado em 1980, em meados daquela década. Apesar de terem concepções completamente diferentes, tinham um elemento em comum: foram feitos para serem simples, confiáveis e baratos.
Já no início da década de 1990, com o começo da era do carro popular, a Fiat repaginou o Uno, lançado por aqui ainda em 1984, para deixá-lo ainda mais “básico” e aproveitar uma tarifação menor de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para ser um dos carros mais baratos do Brasil na época. Eram tempos em que ter 50 cv de potência era raro, legislações de segurança e emissões quase não existiam e itens como espelho do lado passageiro e encosto de cabeça eram opcionais.
Ainda era caro comprar um carro, então, as pessoas se contentavam em ter veículos sem ar-condicionado e com espaço interno limitado.
Depois da virada dos anos 2000, a indústria nacional ganhou volume e, com isso, foi possível diluir o custo de desenvolvimento — e de alguns equipamentos extras. E assim o público se acostumou a ter direção assistida, ar-condicionado e outros itens que eram considerados artigos de luxo no passado. Até mesmo a transmissão automática vem sendo mais demandada.
Já nos anos 2010, regulamentações governamentais de segurança e de emissão de poluentes começaram a impactar os custos e, por consequência, os preços dos carros.
Em 2014, por exemplo, freios ABS e duplo airbag frontal passaram a ser obrigatórios. Em 2023, chegará a demanda por controle eletrônico de estabilidade de série. Agora em 2022, uma nova fase do programa de controle de emissões, o Proconve, vai exigir até controle dos vapores de combustível emitidos durante o abastecimento.
O gosto do público também mudou. Os compradores passaram a desejar cada vez mais os utilitários esportivos. Eles não são necessariamente mais caros de produzir, com a maioria derivada de carros normais já existentes, mas o público enxerga valor na altura maior dos SUVs e esse tipo de carro se tornou mais lucrativo às montadoras.
Segurança, lista de equipamentos farta e maior impressão de tamanho. Tudo isso vai contra o que representavam no passado carros como o Volkswagen Gol, Fiat Uno e demais modelos populares. E é por causa disso que eles devem sair de linha em breve.
Enquanto no passado o ranking dos carros mais vendidos era praticamente dominado por carros de entrada mais baratos, hoje o cenário reflete a mudança de comportamento das montadoras e dos clientes. Antes, carros como Gol e Uno, além dos Chevrolet Celta e Ford Ka estavam no topo da lista. No acumulado de 2021 até novembro, quem lidera é a Fiat Strada, picape que parte dos R$ 87.190 e é a única neste ano a ter ultrapassado o marco de 100 mil unidades comercializadas.
Além disso, a presença de picapes e SUVs, mais caros, no ranking é inegável. Atrás da Strada aparecem Fiat Argo e Hyundai HB20. Logo após, chegam Jeep Renegade (69.621 vendas no ano), Fiat Toro (65.754) e Jeep Compass (64.240). Carros realmente de entrada ficaram para trás, com Fiat Mobi tendo 63.103 emplacamentos, seguido do antigo líder Chevrolet Onix (62.096) e, mais abaixo, o VW Gol (57.899). O Fiat Uno, por exemplo, emplacou somente 19.240 unidades neste ano.
Ou seja, enquanto o ranking costumava ficar concentrado em um ou dois carros populares com volumes maiores que os demais, hoje o cenário é de perda de participação de modelos de entrada em favor de SUVs ou picapes maiores, mais caros e equipados. Como isso é um reflexo do mercado atual, as montadoras estão atentas a essa movimentação também.
Vale lembrar que 2020 e 2021 foram anos de extremas dificuldades para a indústria automotiva global. Foram tempos de fábricas fechadas e escassez de componentes. Sabendo que a demanda por carros baratos diminuiu e que esse tipo de veículo demanda altos volumes para ter uma boa rentabilidade, o foco das fabricantes está mudando.
A Ford é uma das montadoras globais que já avisou: vai focar em SUVs e picapes e, de maneira geral, em veículos de maior rentabilidade e menor volume. Só que a marca norte-americana não está sozinha e o cenário que se desenha tanto lá fora quanto no Brasil vai mostrar uma mudança no que veremos nas ruas.
Sem os grandes volumes de antigamente, não é viável para as montadoras investirem em segmentos de entrada. Somente os custos para adaptar os carros às novas exigências de segurança e ambientais já elevaria os preços. Isso sem contar a desvalorização da moeda que fez os carros 0 km mais baratos do Brasil já partirem de quase R$ 60 mil.
Quem vai gastar quantias maiores em um veículo não aceita mais ser privado de um bom acabamento e da maior quantidade possível de equipamentos. O reflexo é que as vendas dos carros de entrada minguam. Sem investimentos, os veteranos populares envelhecem. O Gol está na mesma geração desde 2008, e o Uno desde 2010.
No caso específico da Volkswagen, o presidente da empresa para América do Sul, Pablo De Si, confirmou que o Gol deixará de ser produzido no Brasil em 2022.
O motivo é que sua plataforma antiga não permite a instalação de novos equipamentos de segurança e foge dos planos da empresa em concentrar os investimentos na arquitetura MQB, que hoje é a base para a maioria dos produtos da marca, indo do Polo até o Tiguan Allspace com poucas variações. O Gol só compartilha plataforma com Voyage e Saveiro hoje.
Ainda não se sabe se o Gol terá uma despedida definitiva ou uma reformulação. A Volkswagen anunciou investimentos de R$ 7 bilhões, e isso incluirá o lançamento de quatro modelos compactos entre 2022 e 2026 na América Latina. Um deles deverá ser uma configuração do Polo atual simplificado para tentar herdar os clientes do Gol.
A dúvida é que o nome ainda pode ser utilizado futuramente em um SUV subcompacto, aos moldes de um Renault Kwid ou do futuro Citroën C3. A maior altura e o apelo aventureiro justificariam aos olhos dos clientes o custo maior. De qualquer forma, o Gol, como conhecemos hoje, está com os dias contados.
O Fiat Uno também não deve escapar desse destino. A marca não declarou nada oficialmente e o modelo tem alguns atributos que até facilitariam sua sobrevivência. Sua plataforma é compartilhada com Mobi e Fiorino, e a atual geração do hatch já ofereceu controle de estabilidade no passado.
A questão do Uno é que, os compradores de carros baratos migraram para o Mobi, enquanto os que desejam mais espaço interno foram para o Fiat Argo. Suas vendas caíram enquanto os dos demais modelos da marca cresceram. Com o lançamento recente do Pulse, a montadora também passou a investir no lucrativo segmento de SUVs.
O fim de Gol e Uno no Brasil, quando ocorrerem, vão encerrar um ciclo em nossa indústria. Ficarão para trás os tempos em que as montadoras investiam em carros simples para serem baratos, venderem em altos volumes e, assim, garantir o lucro. O futuro será cada vez mais focado em veículos de maior valor agregado e, seja por força da lei ou demanda do cliente, mais equipados e mais caros.
Fonte: CNN